As cidades premiadas com os royalties cresceram menos do que as outras. Mas ainda podem escapar da “maldição do ouro negro”.
Marcelo Bortoloti e Helena Borges
Desde a sua descoberta, as gigantescas reservas de petróleo nas profundezas do pré-sal vêm sendo celebradas como um bilhete de loteria premiado. Os primeiros dividendos dessa espetacular riqueza, que pode somar à economia brasileira o equivalente a todo o PIB da Bolívia, já começaram a reforçar o caixa de um conjunto de pequenos e médios municípios entre o norte fluminense, o sul capixaba e o litoral paulista. Nessa rota, de onde emergem 85% da produção nacional. Veja visitou as dez cidades que ao longo da última década mais foram beneficiadas pelo dinheiro dos royalties – fonte que não secará tão cedo graças à sua privilegiada posição no mapa do petróleo. O dinheiro que jorra em seus cofres já representa até 80% de tudo o que arrecadam. Embora as perspectivas sejam reluzentes, o que se vê nesse naco do país não são imagens de desenvolvimento a todo o vapor. Numa comparação caricata, a história desses municípios faz lembrar, ao menos até agora, a daquele felizardo apostador que ganhou uma bolada formidável, mas, sem saber o que fazer com ela, desperdiçou-a na mesma velocidade com que a embolsou.
A história está cheia de exemplos de cidades e países que, repentinamente inundados com o dinheiro fácil dos recursos naturais, negligenciaram a oportunidade de investir na melhoria do nível educacional de sua população e na modernização de suas economias. Mal explorado, esse tipo de riqueza acaba contribuindo para o surgimento de sistemas políticos nocivos, fundados sobre as bases do assistencialismo. Onde essa maldição fez e se faz presente – seja na Potosí que transbordava de prata no século XVII, seja no Zimbábue dizimado pela guerra em tomo dos diamantes ou na Venezuela convertida em palco de populismo e miséria -, perdem os cidadãos e perde a democracia. No eldorado brasileiro do pré-sal, território onde, se tudo der certo, o PIB pode crescer em ritmo chinês, a maldição do petróleo está à espreita. “O que se vê nesses lados do Brasil e típico de lugares onde as instituições ainda não são suficientemente sólidas para lidar com uma mudança tão grande de patamar”, explica o economista Fernando Postali, da Universidade de São Paulo (USP).
Postali é autor de um estudo que comparou a evolução da economia em cidades de mesmo tamanho dentro e fora do raio do petróleo, baseado em dados de 1996 a 2005. A conclusão é espantosa: justamente as que receberam royalties cresceram em ritmo mais lento do que as outras que estão distantes dessa riqueza. Um levantamento da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) lança luz sobre as fragilidades nesses municípios visitados por Veja. Muitos não avançaram e outros até retrocederam naquilo que é vital para perpetuar o desenvolvimento. Em sete deles, o número de postos de trabalho aumentou de forma inexpressiva, ou mesmo encolheu. A maioria também viu sua posição despencar nos rankings nacionais que medem a qualidade da saúde e da educação – nessa última lista, Campos dos Goytacazes, por exemplo, caiu 1.000 posições desde 2000, segundo a Firjan.
Recordista na arrecadação de royalties entre essas dez cidades, Campos é também campeã em ações de improbidade administrativa entre os municípios visitados. Desde 2001, é alvo de 68 processos. Isso ajuda a entender por que, nos cálculos do professor FemandoPostali, a cidade perdeu a chance de somar ao seu PLB per capita 1,3% por ano na última década. Ali, a prefeita Rosinha Garotinho – que tenta a reeleição depois que seu marido, o ex-governador Anthony Garotinho, administrou a cidade por dois mandatos na década de 90 – lotou as repartições de funcionários com cargos de confiança (são 1000 deles, o dobro dos existentes na Alemanha), distribui mensalmente 2,5 milhões de reais em benefícios a famílias escolhidas por critérios pouco transparentes e torrou 80 milhões de reais para erguer um sambódromo. Outra das cidades na rota do pré-sal. Presidente Kennedy, no Espírito Santo, tomou-se palco tão escancarado dos desmandos com o dinheiro público que, em abril, a Polícia Federal prendeu o prefeito, seis secretários e quatro vereadores por contratações irregulares e fraude em licitações. Essa turma não demonstrava nenhuma cerimônia com as verbas oficiais: pagava conta de farmácia dos moradores, dava aos produtores rurais ração à vontade e bancava uma frota de tratores que prestava serviço às fazendas. Nomeado interventor, o ex-promotor Lourival do Nascimento se assustou ao chegar ao município de 10.000 habitantes e encontrar as ruas de terra batida e tantas crianças fora da escola. Ele alerta: “Sem educação, o dinheiro do petróleo certamente escorrerá pelo ralo”.
Em meio a esse tipo de cenário, as autoridades locais reagem com previsível espanto à questão básica que a Firjan trouxe à tona em recente encontro de prefeitos, secretários e empresários interessados em investir nas cidades do pré-sal. Indagou-se a esses gestores qual era o plano que tinham para o crescimento que se avistava (só em investimentos privados, a região deve receber 14 bilhões de reais até 2014). Fez-se silêncio. “Ficou claro que esses municípios não têm um planejamento nem mesmo para o futuro próximo. Você pergunta, por exemplo: “Onde vão se instalar as empresas que virão?”. Ninguém sabe responder”", diz o economista Cristiano Prado, gerente de competitividade da Firjan. Alguns políticos chegam a revelar até mesmo aversão à ideia do progresso, justificando que suas cidades estão ameaçadas de perder “o ar do interior”. Numa miopia irresponsável, preferem deixar tudo como está.O resultado é o que se observa em Macaé – um emblemático cartão-postal do crescimento desordenado na ilha do pré-sal. Próxima à base de exploração da Petrobras e ponto de partida para o traslado de helicópteros rumo ao alto-mar, a cidade de 210.000 habitantes é uma das únicas duas entre as dez visitadas que não só recebem royalties como também sediam atividades diretamente ligadas ao petróleo (a outra é Rio das Ostras). Desde 1980, Macaé recebeu mais de 5.000 empresas, quinze cursos de instituições federais de nível superior, centros de pesquisa de primeira linha (como o da multinacional francesa Schlumberger) e ainda viu florescer bons restaurantes e hotéis de luxo. A população disparou nesse período: 174%. Houve avanços, portanto, mas a inação pública e a ausência de qualquer planejamento fizeram dobrar o número de pessoas que vivem em favelas, e o índice de homicídios chegou a 51 por 100.000 habitantes, o dobro do registrado no Rio de Janeiro. Há uma década, a cobertura da rede de esgoto está estacionada em 66% e a de fornecimento de água caiu 10%. Como é praxe no discurso dos governantes brasileiros e muito comum no trajeto do pré-sal, o secretário municipal de desenvolvimento, Clinton Santos, lança a culpa sobre terceiros: “A Petrobras só faz planos a curto prazo, e é difícil acompanhar essa dinâmica”.Os raros municípios que têm aproveitado o dinheiro do petróleo para crescer sobre uma base sólida trilham caminho semelhante ao de países mais bem-sucedidos nesse campo – todos usaram esse dinheiro para fortalecer uma vocação econômica natural. É o que Ilhabela, no litoral paulista, e Búzios, no Rio, começam a fazer com o turismo, por exemplo. A experiência reforça a ideia de que, para multiplicar essa riqueza, não há que inventar a roda, mas obedecer com disciplina à cartilha universalmente aceita da boa gestão. A Noruega só conseguiu transformar-se na meca da alta tecnologia na indústria do petróleo treinando obsessivamente seus quadros. Fez tudo com respeito quase religioso a metas e prazos. No Brasil, o primeiro passo é regulamentar o uso dos royalties, que, pela lei atual, podem ser investidos em quase tudo, à exceção do pagamento de dívidas e de pessoal (mas até essa restrição é driblada com subterfúgios como as contratações temporárias, como Veja observou). “É preciso estabelecer regras que canalizem os recursos para saúde, educação e infraestrutura”, enfatiza a promotora Nícia Regina Sampaio, do Ministério Público do Espírito Santo, coordenadora de um programa que forma gestores e informa a população sobre as verbas que inundam o caixa de seus municípios – uma boa iniciativa. É a transparência o que impedirá a sobrevivência dos regimes retrógrados que se perpetuam alimentando-se do ouro negro. E é o bom planejamento o que pode fazer com que ele se converta. Enfim, em riqueza de verdade.
Fonte: Revista Veja (22/08/2012)
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